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Autilização das chamadas "poison pills" \(pílulas de veneno\) foi amplamente difundida entre as companhias brasileiras\. Apesar dos aspectos positivos - como o de proteger a companhia de ofertas realizadas por preços injustos ou contrárias ao interesse social -, muitas vezes a inclusão de tais previsões no estatuto social gerou efeitos diversos aos pretendidos\. Em meio a um cenário de crise financeira mundial, os interesses frustrados com a utilização das poison pills intensificaram o debate sobre quais controvérsias societárias podem ser solucionadas pela via arbitral\.
A arbitragem constitui um mecanismo de solução de controvérsia que passou a constar amplamente dos estatutos sociais das companhias quando da inclusão do parágrafo 3º ao artigo 109 na Lei das S\.A\. durante sua reforma, ocorrida em 2001\. A utilização da arbitragem também passou a ser uma previsão obrigatória dos estatutos das sociedades cujas ações estejam listadas no Novo Mercado da BM&FBovespa\.
A Lei nº 9\.307, de 1996, tratou do objeto da arbitragem em seu artigo 1º ao estabelecer que podem ser dirimidos pela via arbitral questões relativas "a direitos patrimoniais disponíveis"\. O artigo refere-se a questões sobre as quais se possa contratar, ou seja, sobre a natureza disponível dos direitos\. A disponibilidade deve ser analisada sob o espectro da autonomia da vontade: se as partes decidiram submeter o litígio à arbitragem essa vontade deve ser respeitada\.
Todavia, há hipóteses em que normas imperativas afastam a vontade das partes em nome do interesse público\. Em tais casos, o objeto do litígio não será arbitrável, pois se trata de um direito indisponível, relacionado ao exercício do poder estatal\. Como a Lei nº 9\.307 não tratou dos litígios societários, aplica-se a regra geral que estabelece que à arbitragem podem ser submetidos todos os conflitos societários relativos a direitos patrimoniais disponíveis\. Como o objetivo principal das companhias é a produção de lucro, em princípio todas as questões societárias estão ligadas a direitos patrimoniais disponíveis\. Contudo, a simplicidade dessa afirmativa não é suficiente para explicar a complexidade das questões de direito societário\.
De início, no direito italiano, defendeu-se que todos os assuntos atinentes aos direitos individuais do acionista seriam arbitráveis\. Tal posicionamento mostrou-se por demais conservador, não autorizando o uso da arbitragem para situações que transcendessem a esfera individual do sócio\. Não se poderia, por exemplo, decidir impugnações de decisões de assembleia geral por meio da arbitragem, já que necessariamente o resultado do conflito refletiria sobre todo o universo de acionistas\.
A dificuldade em definir quais as matérias societárias são arbitráveis deriva exatamente da natureza associativa das companhias\. O status do acionista e a titularidade de seus valores mobiliários diferem dos padrões do direito de propriedade, impedindo a aplicação pura e simples do critério da patrimonialidade e disponibilidade\.
A lei italiana foi a única a tratar da arbitrabilidade objetiva dos litígios societários, estabelecendo que podem ser submetidas à arbitragem as controvérsias entre sócios e entre esses e a sociedade que tenham por objeto direitos disponíveis atinentes à relação social\. Além disso, prevê, indiretamente, a possibilidade de resolução de conflitos que envolvam administradores ao permitir que eles se vinculem à cláusula compromissória\. Ademais, estatuiu a possibilidade de resolução, por arbitragem, de impugnações de deliberações sociais ao permitir que os árbitros decidam sobre a suspensão da eficácia da deliberação de assembleia geral\.
Em princípio, entendemos, que tudo aquilo que pode ser validamente decidido pela sociedade é arbitrável, pois se refere à autonomia privada da companhia, representada pela disponibilidade do tema via manifestação de vontade da assembleia geral\. Porém, deve ser feita distinção entre decisões assembleares que criam ou não direitos para terceiros, de modo a resguardar os direitos de terceiros de boa-fé\.
Com essa fórmula interpretativa e levando-se em conta a possibilidade de o árbitro aplicar uma norma de caráter imperativo, cabe a arbitragem, por exemplo, em \(1\) impugnação de decisão de assembleia geral; \(2\) impugnação de decisão dos outros órgãos societários, como a diretoria, o conselho de administração e o conselho fiscal; \(3\) questões ligadas ao direito de recesso; \(4\) interpretação de cláusulas estatutárias, inclusive aquelas fundadas em normas de ordem pública, desde que essas sejam respeitadas; \(5\) questões ligadas ao pagamento de dividendos; \(6\) exercício do direito de voto em situações de conflito de interesses, conforme o artigo 115 da Lei das S\.A\. e \(7\) operações de reestruturação societária\.
Dentre as questões relativas às cláusulas estatutárias que podem ser apreciadas na via arbitral, é possível, por exemplo, discutir a legalidade da fixação de obrigação de o acionista ou grupo, que adquirir uma participação superior a um determinado limite, realizar oferta pública para adquirir as demais ações, pagando o valor estabelecido no estatuto, acrescido de um prêmio\. A quantificação desses montantes também pode ser objeto de apreciação pelo árbitro\.
A questão de quais litígios podem ser submetidos à arbitragem também diz respeito a contratos celebrados pela companhia no sistema financeiro e no mercado de capitais\. Ainda que a jurisprudência sinalize a inadmissibilidade de solução de litígios envolvendo direito do consumidor pela via arbitral, é importante lembrar o fundamento de tal orientação: a vulnerabilidade do consumidor e sua hipossuficiência\. Dessa forma, não é impossível a instituição da arbitragem pela via do compromisso, quando, surgida a controvérsia, as partes, de comum acordo, iniciam o procedimento arbitral\.
Com efeito, excetuadas as hipóteses de serviços bancários em que se aplica o Código de Defesa do Consumidor, há outras relações jurídicas estabelecidas entre instituições financeiras ou entre essas e companhias de grande porte que podem prever a via arbitral como a solucionadora de eventuais controvérsias\. No contrato de "underwriting", por exemplo, em que ocorre a atuação de instituições financeiras na colocação de valores mobiliários no mercado, não há qualquer dúvida sobre a arbitrabilidade de eventuais conflitos surgidos seja entre os membros do consórcio de underwriters, seja entre esses e a companhia emissora\. Da mesma forma, nos contrato de swap e demais derivativos é cabível a previsão de cláusula compromissória para decidir questões relativas, por exemplo, a um aumento excessivo das taxas de câmbio\.
Nelson Eizirik é advogado e sócio do escritório Carvalhosa e Eizirik Advogados