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Em março de 2009, a Lei nº 9.790, que trata das organizações da sociedade civil de interesse público (oscips), alcançará dez anos de existência. Essa lei surgiu no segundo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso a partir das discussões entre governo federal, parlamentares e sociedade civil. Seu escopo fundamental consistiu na construção de um marco regulatório do terceiro setor que garantisse maior clareza e segurança à atuação das organizações não-governamentais. Houve muitos avanços, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido quando o assunto é a legislação do setor. Tal discussão é motivada principalmente por episódios recentes em que se denunciaram desvios no repasse de verbas públicas, assim como irregularidades na prestação de serviços à coletividade. É preciso que o terceiro setor tenha uma legislação que valorize as organizações que atuem com qualidade e correção.
A Lei das Oscips trouxe maior nitidez à qualificação das organizações, isto é, a concessão do título pelo Estado não mais se condiciona a critérios nebulosos e subjetivos como desafortunadamente ocorria com a chamada declaração de utilidade pública federal, instituída pela Lei nº 91, de 1935, e ainda em vigor. A rigor, a legislação anterior à das oscips patrocinou, em afronta ao princípio republicano, que entidades sociais divorciadas do espírito do terceiro setor recebessem títulos de utilidade pública, como é o caso de clubes de tiro ao alvo. Essa lei possui caráter sucinto e genérico, sem parâmetros objetivos na seleção de entidades voltadas ao desenvolvimento de serviços relevantes para a coletividade.
Não há dúvida que a lei emerge como instrumento fundamental a ser obedecido pelo Estado para a escolha criteriosa de organizações do terceiro setor na celebração de parcerias ou, ainda, na concessão de benefícios fiscais. O incentivo a essas organizações não pode ser encarado como uma mera benesse do Estado, mas sim como um dos pilares básicos da política pública, em consonância com os princípios constitucionais da impessoalidade, legalidade e moralidade.
Com efeito, a Lei nº 9.790, de 1999, representa um grande avanço, na medida em que as entidades, para que sejam qualificadas como oscips, deverão perseguir claramente determinadas finalidades sociais, como a promoção de assistência social, da cultura, da educação ou saúde gratuitas, entre outras, intimamente relacionadas ao mosaico de atividades típicas do terceiro setor. Além disto, a Lei das Oscips proíbe a outorga desse título a entidades que se dediquem a proporcionar bens ou serviços a um círculo restrito de associados (benefício mútuo). Isso significa que não podem ser qualificadas como oscips entidades como clubes (como os de tiro ao alvo), associações que atendam precipuamente aos seus associados e sócios, portanto divorciadas do interesse público.
Embora represente um passo adiante, tal regulação não é suficiente. A imprensa noticia rotineiramente irregularidades e desvios em repasses de verbas decorrentes de convênios e outras parcerias celebradas entre Estado e organizações. O Tribunal de Contas da União (TCU) tem detectado a ausência de critérios objetivos na escolha das entidades, bem como a deficiência ou mesmo a ausência de serviços prestados com recursos públicos por determinadas organizações.
Não se pode compreender que, após a sucessão de denúncias e evidências de malversação de recursos públicos em parcerias nas diversas esferas administrativas, o país não tenha concebido novo ambiente regulatório de modo a estabelecer adequadamente as relações entre o Estado e as entidades. A escolha das organizações pelo Estado deve ser precedida, em regra, de um processo seletivo que avalie, por intermédio de publicação de edital convocatório, a qualificação da organização, bem como a consistência do projeto formulado com base em critérios técnicos e objetivos para a celebração da parceria que melhor atenda ao interesse público.
É sabido que as oscips se submetem ao concurso de projetos. Entretanto, urge que o Estado brasileiro estabeleça regras claras e transparentes para a escolha de organizações do terceiro setor como um todo. Aliás, não é apenas tal escolha que está em jogo. É imprescindível o aperfeiçoamento das técnicas de controle sobre as transferências de recursos públicos. O Estado tem que fazer uma ótima escolha e deve também controlar com afinco a correta aplicação dos recursos. Nesse aspecto, torna-se imperiosa uma reforma administrativa e legislativa ampla nas diversas unidades federativas, sobretudo a partir da capacitação e reestruturação dos conselhos de políticas públicas, como os conselhos municipais dos direitos da criança e do adolescente e os conselhos municipais de assistência social, órgãos que produzem diretrizes nas suas áreas e possuem um papel relevante no controle de políticas públicas e parcerias.
As louváveis iniciativas do terceiro setor não podem perecer diante da ausência de regras claras. Deseja-se que a cantilena da "separação de joio do trigo" ceda espaço a novo marco regulatório, a uma postura propositiva que mantenha os avanços conquistados na Lei das Oscips e, ao mesmo tampo, fixe parâmetros normativos contemporâneos para a relação entre Estado e terceiro setor, que sejam dotados de transparência, objetividade e eficiência, não apenas na escolha das organizações, mas na execução dos projetos e serviços de natureza social. É indispensável que o Estado preserve a liberdade de associação própria do terceiro setor e, ademais, qualifique o controle exercido sobre as iniciativas realizadas em parceria.
O novo marco regulatório terá efetividade na medida em que envolver a sociedade como um todo e, sobretudo, estabelecer, para além das obrigações recíprocas entre o Estado e as organizações, os direitos básicos dos beneficiários e usuários dos serviços prestados mediante parceria. Enfim, a relação do Estado com o terceiro setor não pode se pautar pelas benesses, pelo jogo de favores e privilégios. Igualmente, o vínculo do Estado e das organizações com os cidadãos deve se orientar pela adoção de regras objetivas e transparentes, a partir de um arcabouço inovador que disponha sem rodeios dos direitos e obrigações dos diversos atores.
Luis Eduardo Patrone Regules é advogado, sócio do escritório Tojal, Teixeira Ferreira, Serrano e Renault Advogados Associados e mestre em direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo